This is my interview with Hassan Nasrallah, as published in Folha de S.Paulo (or "the main parts of the interview", as Folha says).
Note from the Author: I will refrain from posting here the two accompanying articles, because they would have to carry a disclaimer I have no time to make right now. As a quick summary: both pieces written by me were heavily edited by Folha, prompting me to threaten a lawsuit. Folha changed several of my words because, according to the editor on an email to me, an order "came from above". One of those changes deserves a special mention: the '82 Israeli invasion of Lebanon became an "intervention." Like the Ministry of Truth in Oceania, Folha tried to change the present by defrauding the past, pretending the invasion had never happened. After several emails among me, the owner of the newspaper (Frias), its ombudsman (Ajzenberg) and my direct editor (Malbergier), I was finally allowed a mere 800 characters to write a correction on the page 3 of the newspaper. Among other things, I taught Folha that if they bothered reading Israeli newspapers, they would know that the very Jerusalem Post calls the invasion an invasion. But if reading newspapers wasn't a thing done by Folha's journalist, they could then just check the Britannica Encyclopedia. Yet should none of that suffice to convince them, they could have just read Sharon's biography - there, too, the very invader refers to the invasion as an invasion. Yeah, folks, you have no idea how captured the Brazilian media is. No idea.
22/06/2003 - 09h06
free-lance para a Folha de S.Paulo, em Beirute
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o secretário-geral do Hizbollah, Hassan Nasrallah, concedeu à Folha em Beirute, no último dia 10. (PS)
Folha - O que o sr. acha do plano que foi proposto pelos EUA para a retomada do processo de paz israelo-palestino?
Hassan Nasrallah - Acreditamos que a intenção do plano seja liquidar a Intifada palestina [revolta popular contra a ocupação israelense] e, como os grupos palestinos, temos nossas reservas.
A proposta exige que o governo palestino e a resistência se desarmem, protegendo a ocupação israelense, os assentamentos e os soldados israelenses, e isso pode levar a uma guerra civil na Palestina.
Os palestinos e israelenses vão se sentar à mesa de negociação e vão discutir questões que Sharon [o premiê israelense] já declarou serem inegociáveis, como o direito de retorno dos refugiados palestinos, o fim definitivo dos assentamentos e a insistência de considerar Jerusalém como capital unicamente de Israel. Portanto, mesmo que a proposta dos EUA proponha um caminho para a negociação, ela vem com impedimentos decisivos.
Folha - Então o sr. concorda com a posição do Hamas [grupo terrorista palestino] de não aceitar discutir o plano?
Nasrallah - Nós apoiamos o diálogo tanto entre os grupos palestinos como entre os grupos palestinos e a Autoridade Nacional Palestina. É claro que a recente posição do Hamas foi uma reação direta ao discurso de Abu Mazen [premiê palestino] em Ácaba [cidade jordaniana onde os premiês israelense e palestino se reuniram, com a presença do presidente George W. Bush, e aceitaram retomar o processo de paz tendo como base o plano proposto pelos EUA]. Mazen se encontrou com o Hamas antes de ir a Ácaba, criou toda uma expectativa positiva sobre a sua posição em relação ao plano dos EUA, mas depois o discurso ficou diferente. Isso fez com que o Hamas se sentisse como se tivesse sido esfaqueado pelas costas, insultado.
Folha - Existe alguma chance de o Hizbollah algum dia aceitar o Estado de Israel?
Nasrallah - Antes de 1948 não havia nenhum Estado com esse nome. Havia a Palestina e o povo da Palestina, que incluía cristãos, muçulmanos e judeus. Eles coexistiram por centenas de anos em paz. Daí veio o movimento sionista e organizou grupos terroristas do mundo inteiro. Eles começaram a agir intimidando os palestinos e os expulsando da sua própria terra. Portanto, nós consideramos tal Estado ilegítimo, ilegal. Ele foi estabelecido usurpando a terra de outros.
Mas isso pertence ao passado. O que nós esperamos, no futuro, é a solução do problema. Defendemos a existência de um só país, que vá do mar Mediterrâneo até o rio Jordão, e que inclua muçulmanos, cristãos e judeus. Que seja um Estado democrático, em que a maioria da população possa escolher o tipo de governo que desejar, seja ele religioso ou secular, mas democrático.
Folha - O Hizbollah aceitaria se desarmar em troca de U$ 500 milhões, como foi sugerido pelo deputado americano de origem libanesa Darrel Issa?
Nasrallah - Nós vemos essa proposta como um insulto. A resistência, as armas da resistência e a força de vontade da resistência não podem ser medidas nem substituídos com dinheiro. A resistência é uma reação à invasão do Líbano e às suas repercussões: a ocupação, os prisioneiros, a destruição da infra-estrutura, centenas de milhares de mártires e feridos, centenas de milhares de refugiados. Qualquer solução que se queira dar à resistência tem de envolver a remoção das razões que levaram a isso, não há solução através de dinheiro. Existem muitas famílias que ofereceram seus filhos como mártires na resistência. Eu sou um deles. Dá para eu aceitar vender meu filho martirizado ao sr. Darrel Issa por US$ 500 milhões?
Folha - O sr. disse, em um de seus discursos, que, no Líbano, "nós temos orgulho da unidade nacional entre as diferentes confissões". De fato, estão todos unidos contra o Estado de Israel. Mas e se a população do Líbano decidir que está satisfeita com um possível acordo de paz entre palestinos e Israel, e o Líbano decidir assinar um tratado de paz também?
Nasrallah - O que importa é que os palestinos aceitem o acordo de paz, não os libaneses. Qualquer solução tem de ter o apoio dos palestinos, mas até agora esse apoio não existe. Não há um só palestino que aceite um acordo que não inclua o direito de retorno à sua própria terra, ou que abra mão da cidade de Jerusalém. De qualquer maneira, o que está sendo proposto agora, tanto para os palestinos como para os libaneses ou sírios, não satisfaz à maioria das populações de nenhum desses países.
Folha - Agora, com relação a algo que envolve o Brasil diretamente, o Hizbollah recebe doações da Tríplice Fronteira [região entre Brasil, Argentina e Paraguai onde há uma importante comunidade islâmica]?
Nasrallah - Os libaneses que moram nessa área emigraram por causa das dificuldades econômicas no Líbano e por causa da guerra. Mal conseguem alimentar toda a família que têm no Líbano. Não existe doação nenhuma vinda dessa área.
Folha - A sua luta é contra a injustiça ou contra os "infiéis"? Por que o Hizbollah não combate a opressão em países árabes, como a que existia contra os xiitas no Iraque de Saddam Hussein?
Nasrallah - O Hizbollah se estabeleceu no Líbano por causa da invasão israelense. Como você sabe, eles ocuparam uma grande parte do território libanês, entraram na capital, Beirute, mataram dezenas de milhares de pessoas, cometeram genocídio [Israel nega ter cometido genocídio durante a invasão do Líbano em 1982], destruíram várias cidades. No que diz respeito a lutar contra injustiças, existem vários aspectos da injustiça no nosso país e na nossa região, mas a injustiça pode ser combatida de maneiras diferentes. Às vezes, recorrer às armas para combater certa injustiça é prejudicial. Nós temos os meios políticos, o meio popular, até a mídia é um veículo para combater injustiça.
Folha - Se Israel deixar a área de Shebaa [região ocupada por Israel que, segundo a ONU, é síria, mas, segundo o Hizbollah, é libanesa], o Hizbollah vai continuar lutando pelos palestinos?
Nasrallah - A razão da existência do Hizbollah é defensiva. Desde a retirada de Israel em 2000, ainda existem algumas operações militares nas fronteiras, e na área de Shebaa. Israel também mantém prisioneiros libaneses, temos o problema dos 300 mil refugiados palestinos no Líbano, sofremos violações diárias do território libanês, assim como bombardeio na fronteira e a ameaça constante de guerra. Alguns meses atrás, o Líbano quis usar uma parte da água do Wazzani, um rio pequeno que nasce no Líbano e vai para a Palestina. É direito do Líbano usar uma parte daquela água, assegurado por acordos internacionais, e o governo libanês tentou usar menos do que o que lhe cabe. Sharon pessoalmente ameaçou com guerra. Então nós estamos num país que é ameaçado e nós estamos na posição de defendê-lo. No que diz respeito à questão da Palestina, é o povo palestino que luta para liberar a sua terra, como os libaneses lutaram para liberar a sua. É claro que é dever de todos nós apoiá-los, mas ninguém deveria lutar no lugar de ninguém.
Folha - Alguns analistas acreditam que, com um eventual acordo entre Israel e Palestina, o Hizbollah perderia a razão de ser.
Nasrallah - Isso não é verdade. O Hizbollah administra vários conselhos municipais e participa das áreas sociais, educacionais e de saúde. O Hizbollah tem uma plataforma política no Líbano e é atualmente o maior partido político do país.
Folha - O Hizbollah é a favor de uma república islâmica no Líbano?
Nasrallah - É natural que nós aspiremos, em teoria, a um Estado islâmico. Mas nós também acreditamos que um Estado muçulmano não pode ser uma imposição. As pessoas precisam acreditar nesse projeto. Veja por exemplo o caso do Irã. Foi o povo iraniano que derrubou o regime do xá [Reza Pahlevi]. Não foi um golpe de Estado, foram dezenas de milhões de iranianos. Depois, numa eleição livre, os iranianos elegeram um conselho de especialistas, que redigiu a Constituição, adotada pelo Estado islâmico e aprovada em referendo. Se o povo libanês desejar um Estado islâmico, então eles terão. Mas isso nunca vai ser uma imposição.
Folha - Então uma república islâmica no Líbano permitiria que os cristãos tivessem seus próprios costumes, igrejas, regras sobre casamento, divórcio, herança?
Nasrallah - Em primeiro lugar, não existe clima no Líbano para um Estado islâmico, mas eu posso falar sobre a experiência no Irã. Os cristãos têm suas próprias igrejas, sua própria entidade social e política, praticam seus ritos, até os judeus têm suas próprias cortes religiosas e membros no Parlamento, mesmo sendo uma minoria pequena. Os direitos civis são iguais aos dos muçulmanos.
Folha - Quando o seu filho morreu lutando contra Israel, a sua reação foi de uma resignação praticamente sobre-humana. Seu sorriso chegou a virar notícia. Mas, na intimidade, como Hassan Nasrallah reagiu? O sr. acredita que se deve ter prazer neste mundo, ou tudo que se espera é a vida após a morte prometida no Alcorão? O sr. consegue pensar em coisas mais temporais como a felicidade e o conforto?
Nasrallah - Antes de o meu filho ter sido martirizado em 1997 [o verbo "morrer" praticamente não existe para se referir a muçulmanos que morrem lutando contra Israel], por 15 anos eu vinha dando adeus a outros mártires. Com todos eles eu me senti como se eles fossem meus filhos e irmãos. É claro que com Hadi tive um sentido de perda diferente, porque ele é meu filho direto. Mas todos foram martirizados pela causa em que acreditamos. Nós temos de nos satisfazer com a escolha de Deus. Eu pessoalmente sinto a dor de perdê-los, posso até chorar em segredo, mas, no campo de batalha, militar ou político, temos de ser fortes e resolutos.
Quanto à noção que você apresentou, o islã é uma religião para esta vida e a próxima. O Alcorão prega aos fiéis que aproveitem o que Deus lhes deu, as coisas boas, sem cair em pecado. O islã tem uma noção diferente do cristianismo, até no que diz respeito ao clero. Nós não temos monges no islã, reclusão. O homem [religioso] pode viver uma vida natural, casar, ter filhos, comprar e vender, ser ativo na política. Mas a vida após a morte tem uma posição especial no coração dos muçulmanos porque é eterna, enquanto esta vida é temporal, limitada.
Folha - O sr. acredita que aqueles que seguem dogmas religiosos, como rezar cinco vezes ao dia, estejam mais próximos de Deus do que, por exemplo, pessoas que não acreditam nesses ritos, mas fazem o bem a outras pessoas?
Nasrallah - Tudo tem o seu próprio valor. Ajudar os outros tem enorme valor, não há dúvida. E oração também tem um grande valor. Deus nos pediu que fizéssemos os dois. Se praticarmos um sem praticar o outro, estará faltando algo nas nossas vidas e nos nossos valores. Nós não acreditamos que religião consiste apenas de rituais. Deus nos disse para venerá-Lo a fim de que nos purificássemos, mas não porque Ele precise da nossa adoração.
O Alcorão diz que orações previnem que se cometam pecados, coisas ruins para si e para os outros. Portanto, aquele que ora, mas agride os outros, rouba, deixa de ajudar os necessitados quando pode fazê-lo, para essa pessoa a oração não tem valor nenhum, porque a sua oração é só externa.
Note from the Author: I will refrain from posting here the two accompanying articles, because they would have to carry a disclaimer I have no time to make right now. As a quick summary: both pieces written by me were heavily edited by Folha, prompting me to threaten a lawsuit. Folha changed several of my words because, according to the editor on an email to me, an order "came from above". One of those changes deserves a special mention: the '82 Israeli invasion of Lebanon became an "intervention." Like the Ministry of Truth in Oceania, Folha tried to change the present by defrauding the past, pretending the invasion had never happened. After several emails among me, the owner of the newspaper (Frias), its ombudsman (Ajzenberg) and my direct editor (Malbergier), I was finally allowed a mere 800 characters to write a correction on the page 3 of the newspaper. Among other things, I taught Folha that if they bothered reading Israeli newspapers, they would know that the very Jerusalem Post calls the invasion an invasion. But if reading newspapers wasn't a thing done by Folha's journalist, they could then just check the Britannica Encyclopedia. Yet should none of that suffice to convince them, they could have just read Sharon's biography - there, too, the very invader refers to the invasion as an invasion. Yeah, folks, you have no idea how captured the Brazilian media is. No idea.
22/06/2003 - 09h06
Plano dos EUA pode levar à guerra civil palestina, diz Hizbollah
PAULA SCHMITTfree-lance para a Folha de S.Paulo, em Beirute
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o secretário-geral do Hizbollah, Hassan Nasrallah, concedeu à Folha em Beirute, no último dia 10. (PS)
Folha - O que o sr. acha do plano que foi proposto pelos EUA para a retomada do processo de paz israelo-palestino?
Hassan Nasrallah - Acreditamos que a intenção do plano seja liquidar a Intifada palestina [revolta popular contra a ocupação israelense] e, como os grupos palestinos, temos nossas reservas.
A proposta exige que o governo palestino e a resistência se desarmem, protegendo a ocupação israelense, os assentamentos e os soldados israelenses, e isso pode levar a uma guerra civil na Palestina.
Os palestinos e israelenses vão se sentar à mesa de negociação e vão discutir questões que Sharon [o premiê israelense] já declarou serem inegociáveis, como o direito de retorno dos refugiados palestinos, o fim definitivo dos assentamentos e a insistência de considerar Jerusalém como capital unicamente de Israel. Portanto, mesmo que a proposta dos EUA proponha um caminho para a negociação, ela vem com impedimentos decisivos.
Folha - Então o sr. concorda com a posição do Hamas [grupo terrorista palestino] de não aceitar discutir o plano?
Nasrallah - Nós apoiamos o diálogo tanto entre os grupos palestinos como entre os grupos palestinos e a Autoridade Nacional Palestina. É claro que a recente posição do Hamas foi uma reação direta ao discurso de Abu Mazen [premiê palestino] em Ácaba [cidade jordaniana onde os premiês israelense e palestino se reuniram, com a presença do presidente George W. Bush, e aceitaram retomar o processo de paz tendo como base o plano proposto pelos EUA]. Mazen se encontrou com o Hamas antes de ir a Ácaba, criou toda uma expectativa positiva sobre a sua posição em relação ao plano dos EUA, mas depois o discurso ficou diferente. Isso fez com que o Hamas se sentisse como se tivesse sido esfaqueado pelas costas, insultado.
Folha - Existe alguma chance de o Hizbollah algum dia aceitar o Estado de Israel?
Nasrallah - Antes de 1948 não havia nenhum Estado com esse nome. Havia a Palestina e o povo da Palestina, que incluía cristãos, muçulmanos e judeus. Eles coexistiram por centenas de anos em paz. Daí veio o movimento sionista e organizou grupos terroristas do mundo inteiro. Eles começaram a agir intimidando os palestinos e os expulsando da sua própria terra. Portanto, nós consideramos tal Estado ilegítimo, ilegal. Ele foi estabelecido usurpando a terra de outros.
Mas isso pertence ao passado. O que nós esperamos, no futuro, é a solução do problema. Defendemos a existência de um só país, que vá do mar Mediterrâneo até o rio Jordão, e que inclua muçulmanos, cristãos e judeus. Que seja um Estado democrático, em que a maioria da população possa escolher o tipo de governo que desejar, seja ele religioso ou secular, mas democrático.
Folha - O Hizbollah aceitaria se desarmar em troca de U$ 500 milhões, como foi sugerido pelo deputado americano de origem libanesa Darrel Issa?
Nasrallah - Nós vemos essa proposta como um insulto. A resistência, as armas da resistência e a força de vontade da resistência não podem ser medidas nem substituídos com dinheiro. A resistência é uma reação à invasão do Líbano e às suas repercussões: a ocupação, os prisioneiros, a destruição da infra-estrutura, centenas de milhares de mártires e feridos, centenas de milhares de refugiados. Qualquer solução que se queira dar à resistência tem de envolver a remoção das razões que levaram a isso, não há solução através de dinheiro. Existem muitas famílias que ofereceram seus filhos como mártires na resistência. Eu sou um deles. Dá para eu aceitar vender meu filho martirizado ao sr. Darrel Issa por US$ 500 milhões?
Folha - O sr. disse, em um de seus discursos, que, no Líbano, "nós temos orgulho da unidade nacional entre as diferentes confissões". De fato, estão todos unidos contra o Estado de Israel. Mas e se a população do Líbano decidir que está satisfeita com um possível acordo de paz entre palestinos e Israel, e o Líbano decidir assinar um tratado de paz também?
Nasrallah - O que importa é que os palestinos aceitem o acordo de paz, não os libaneses. Qualquer solução tem de ter o apoio dos palestinos, mas até agora esse apoio não existe. Não há um só palestino que aceite um acordo que não inclua o direito de retorno à sua própria terra, ou que abra mão da cidade de Jerusalém. De qualquer maneira, o que está sendo proposto agora, tanto para os palestinos como para os libaneses ou sírios, não satisfaz à maioria das populações de nenhum desses países.
Folha - Agora, com relação a algo que envolve o Brasil diretamente, o Hizbollah recebe doações da Tríplice Fronteira [região entre Brasil, Argentina e Paraguai onde há uma importante comunidade islâmica]?
Nasrallah - Os libaneses que moram nessa área emigraram por causa das dificuldades econômicas no Líbano e por causa da guerra. Mal conseguem alimentar toda a família que têm no Líbano. Não existe doação nenhuma vinda dessa área.
Folha - A sua luta é contra a injustiça ou contra os "infiéis"? Por que o Hizbollah não combate a opressão em países árabes, como a que existia contra os xiitas no Iraque de Saddam Hussein?
Nasrallah - O Hizbollah se estabeleceu no Líbano por causa da invasão israelense. Como você sabe, eles ocuparam uma grande parte do território libanês, entraram na capital, Beirute, mataram dezenas de milhares de pessoas, cometeram genocídio [Israel nega ter cometido genocídio durante a invasão do Líbano em 1982], destruíram várias cidades. No que diz respeito a lutar contra injustiças, existem vários aspectos da injustiça no nosso país e na nossa região, mas a injustiça pode ser combatida de maneiras diferentes. Às vezes, recorrer às armas para combater certa injustiça é prejudicial. Nós temos os meios políticos, o meio popular, até a mídia é um veículo para combater injustiça.
Folha - Se Israel deixar a área de Shebaa [região ocupada por Israel que, segundo a ONU, é síria, mas, segundo o Hizbollah, é libanesa], o Hizbollah vai continuar lutando pelos palestinos?
Nasrallah - A razão da existência do Hizbollah é defensiva. Desde a retirada de Israel em 2000, ainda existem algumas operações militares nas fronteiras, e na área de Shebaa. Israel também mantém prisioneiros libaneses, temos o problema dos 300 mil refugiados palestinos no Líbano, sofremos violações diárias do território libanês, assim como bombardeio na fronteira e a ameaça constante de guerra. Alguns meses atrás, o Líbano quis usar uma parte da água do Wazzani, um rio pequeno que nasce no Líbano e vai para a Palestina. É direito do Líbano usar uma parte daquela água, assegurado por acordos internacionais, e o governo libanês tentou usar menos do que o que lhe cabe. Sharon pessoalmente ameaçou com guerra. Então nós estamos num país que é ameaçado e nós estamos na posição de defendê-lo. No que diz respeito à questão da Palestina, é o povo palestino que luta para liberar a sua terra, como os libaneses lutaram para liberar a sua. É claro que é dever de todos nós apoiá-los, mas ninguém deveria lutar no lugar de ninguém.
Folha - Alguns analistas acreditam que, com um eventual acordo entre Israel e Palestina, o Hizbollah perderia a razão de ser.
Nasrallah - Isso não é verdade. O Hizbollah administra vários conselhos municipais e participa das áreas sociais, educacionais e de saúde. O Hizbollah tem uma plataforma política no Líbano e é atualmente o maior partido político do país.
Folha - O Hizbollah é a favor de uma república islâmica no Líbano?
Nasrallah - É natural que nós aspiremos, em teoria, a um Estado islâmico. Mas nós também acreditamos que um Estado muçulmano não pode ser uma imposição. As pessoas precisam acreditar nesse projeto. Veja por exemplo o caso do Irã. Foi o povo iraniano que derrubou o regime do xá [Reza Pahlevi]. Não foi um golpe de Estado, foram dezenas de milhões de iranianos. Depois, numa eleição livre, os iranianos elegeram um conselho de especialistas, que redigiu a Constituição, adotada pelo Estado islâmico e aprovada em referendo. Se o povo libanês desejar um Estado islâmico, então eles terão. Mas isso nunca vai ser uma imposição.
Folha - Então uma república islâmica no Líbano permitiria que os cristãos tivessem seus próprios costumes, igrejas, regras sobre casamento, divórcio, herança?
Nasrallah - Em primeiro lugar, não existe clima no Líbano para um Estado islâmico, mas eu posso falar sobre a experiência no Irã. Os cristãos têm suas próprias igrejas, sua própria entidade social e política, praticam seus ritos, até os judeus têm suas próprias cortes religiosas e membros no Parlamento, mesmo sendo uma minoria pequena. Os direitos civis são iguais aos dos muçulmanos.
Folha - Quando o seu filho morreu lutando contra Israel, a sua reação foi de uma resignação praticamente sobre-humana. Seu sorriso chegou a virar notícia. Mas, na intimidade, como Hassan Nasrallah reagiu? O sr. acredita que se deve ter prazer neste mundo, ou tudo que se espera é a vida após a morte prometida no Alcorão? O sr. consegue pensar em coisas mais temporais como a felicidade e o conforto?
Nasrallah - Antes de o meu filho ter sido martirizado em 1997 [o verbo "morrer" praticamente não existe para se referir a muçulmanos que morrem lutando contra Israel], por 15 anos eu vinha dando adeus a outros mártires. Com todos eles eu me senti como se eles fossem meus filhos e irmãos. É claro que com Hadi tive um sentido de perda diferente, porque ele é meu filho direto. Mas todos foram martirizados pela causa em que acreditamos. Nós temos de nos satisfazer com a escolha de Deus. Eu pessoalmente sinto a dor de perdê-los, posso até chorar em segredo, mas, no campo de batalha, militar ou político, temos de ser fortes e resolutos.
Quanto à noção que você apresentou, o islã é uma religião para esta vida e a próxima. O Alcorão prega aos fiéis que aproveitem o que Deus lhes deu, as coisas boas, sem cair em pecado. O islã tem uma noção diferente do cristianismo, até no que diz respeito ao clero. Nós não temos monges no islã, reclusão. O homem [religioso] pode viver uma vida natural, casar, ter filhos, comprar e vender, ser ativo na política. Mas a vida após a morte tem uma posição especial no coração dos muçulmanos porque é eterna, enquanto esta vida é temporal, limitada.
Folha - O sr. acredita que aqueles que seguem dogmas religiosos, como rezar cinco vezes ao dia, estejam mais próximos de Deus do que, por exemplo, pessoas que não acreditam nesses ritos, mas fazem o bem a outras pessoas?
Nasrallah - Tudo tem o seu próprio valor. Ajudar os outros tem enorme valor, não há dúvida. E oração também tem um grande valor. Deus nos pediu que fizéssemos os dois. Se praticarmos um sem praticar o outro, estará faltando algo nas nossas vidas e nos nossos valores. Nós não acreditamos que religião consiste apenas de rituais. Deus nos disse para venerá-Lo a fim de que nos purificássemos, mas não porque Ele precise da nossa adoração.
O Alcorão diz que orações previnem que se cometam pecados, coisas ruins para si e para os outros. Portanto, aquele que ora, mas agride os outros, rouba, deixa de ajudar os necessitados quando pode fazê-lo, para essa pessoa a oração não tem valor nenhum, porque a sua oração é só externa.